sexta-feira, 24 de maio de 2024

Uma corrente de ar

Abriu a porta e ficou perplexa. Escandalizada, diria. Estava tudo fora do sítio. Tudo virado do avesso. As cordas do certo e do errado enredadas, sem sinal do começo ou do fim de cada um delas. Gavetas reviradas, papéis espalhados. Foi só uma corrente de ar, pensou. E foi. Foi só uma corrente de ar, é só uma corrente de ar. Uma materialização de um desejo visceral que não há meio de desaparecer. Uma corrente de ar frio que a vem arrepiar. Agora é tempo de arrumar, mas ela não consegue sair do mesmo sítio. Parece que a corrente de ar que a congelou afinal. Anda ali às voltas e voltas, rodopiando, fazendo voar papéis e papéis e memórias. Nada tem nexo. Nem ela consegue perceber muito bem o que é suposto fazer com tudo aquilo.

Deu por si a falar com uma imagem dela própria que andava a voar por ali. Devia ter uns 25 anos. Estava morena e tinha um sorriso quase gargalhada. Estava alguém ao fundo, na direção para onde ela olhava.

Sabes, vivo dividida em fazer o que é certo dentro da minha moralidade e fazer o que me dá vontade e me faz sentir viva (mesmo que isso signifique ir ao limite do que é moralmente aceitável para mim própria). Desta vez excedi-me.

Tenho muita vontade de ser alguém consciente e moralmente correto. Faço essa escolha todos os dias. A de ser correta. No entanto, da mesma forma que tenho muita vontade de o ser, tenho de me sentar contigo a conversar...

Vou já pedir desculpa pelo que possa dizer daqui em diante, mas apercebi-me que esta memória desbloqueou aqui o motivo da minha corrente de ar.

E ele é um problema demasiado delicioso para eu querer resolver. É como uma viagem literária para mim. Um conto. Daqueles que mesmo sendo curtos, têm tanto para dizer. Uma daquelas ideias e vontades que não se podem concretizar, mas que nos fervem nas palmas das mãos. Parece que toda a concepção que eu tinha dele foi posta de parte, está lá guardada, intacta, na memória do que ele era para mim antes do exato momento em que percebi que tb me queria. Quis. Acho que essa é a ideia dele que quero conservar intacta, porque a outra ideia que tenho dele agora está-me a deixar doida. Acho que assumi que ia meter um travão e não foi isso que aconteceu. Foi-se o controlo todo e agora estou aqui.

Não sei bem porque é que lhe pedi que viesse ter comigo naquele dia se já sabia o desfecho desta história. Já sabia que tinha que ser um não. Por mim, por ele, por nós, pelos outros. No fundo só precisava de provar a mim própria que tinha razão. E tinha, porque assim que ele me tocou eu soube que ia ser uma perdição... Só não sabia que ia ser assim: Não consigo dormir sem sonhar contigo. Acordo de noite, em pânico, encharcada, porque parece que tenho a língua dele na minha. Já é a segunda noite... Não estou a saber lidar. Hoje estive parada a lutar contra mim própria a ponderar se lhe ligava a pedir para vir ter comigo ou não. Pronta pra implorar! Ainda escrevi a mensagem, mas consegui apagar. Lá me recompus, entrei no carro e dei-me conta que além de tudo, agora tenho memória do cheiro dele. Ficou impregnado no meu carro. É terrível, é grotesca quase, esta vontade.

Foi o não mais difícil da minha existência.

Eu sei, respondeu a memória, Eu sou tu, apesar de ainda não ter acontecido, sei e sinto tudo o que tu sentes.

Fechou a porta. Percebeu que não tinha capacidade para lidar com aquilo. Voltou para a sua vida de sempre, com o seu amor de sempre, à esperança vã, de sempre também, com que vivia as suas rotinas enfadonhas. O amor não chega. Estava a descobrir isso da pior maneira.